Sobre a prática coletiva de limpeza do chão¹ na recepção/acolhimento dos calouros dos cursos de Educação Física e Dança
O grupo de calouros do curso de Educação Física chegou na sala de dança e encontrou panos de chão, baldes com água e a proposta de limpar o chão da sala.
Tiramos nossos sapatos - primeiro gesto de cuidado com o espaço - depois pegamos os panos e os molhamos. Percebo que cuidar precisa de uma atenção sensível e de um como, escolhemos torcer o pano e nos conectar com nossos pés, costas, centro, pescoço até chegar as nossas mãos no contato com o tecido. Nos posicionamos lado a lado cada um com seu pano umedecido e traçamos um caminho juntos pela sala. Sem líder, escutando o grupo, nos deslocamos estabelecendo relação com o espaço e com o outro, entendendo pela pele o tempo do trajeto.
Precisamos diluir o olho frontal para poder perceber o grupo, o espaço e estar com o chão, com o outro, com o pano e com o rodapé da parede. Ativar os olhos das costas, das costelas, abrir as pálpebras da pele. Como é para quem chega pela primeira vez realizar uma ação cotidiana que se faz usualmente no lugar onde moramos? Não tem obviedade nisso, e não tem forma certa para fazer. Precisamos encontrar caminhos no corpo para tornar a ação menos árdua, já que exige muito fisicamente empurrar o chão daquela maneira, e deixar vibrar o corpo para encostar no como do outro, pois vamos juntos.
Essa foi nossa partilha com quem chega, abrir, escutar, permitir estar com o outro, com o chão, criando uma relação de afeto, de intimidade com o espaço que ocupamos. Limpar, olhar o pano sujo da ação, com as marcas das nossas mãos, marca de contato. Encontramos com quem seria muito improvável esbarrar nos corredores, já que os estudantes de educação física e de dança da EEFD tem muito atrito e distância no seu entre, mas construímos alguma coisa ali, fizemos corpo juntos, compartilhamos o chão, cuidamos do espaço e dos nossos entres, nos misturamos. Sutilezas que mexem, reverberam, abrem frestas para criarmos outros modos de perceber, ocupar e estar juntos.
¹ A limpeza coletiva dos espaços é uma atividade ritualizada em alguns coletivos teatrais, em práticas religiosas e nas artes marciais no Japão, conhecemos um pouco mais sobre ela no livro O ator invisível (2007), escrito pelo ator e diretor Yoshi Oida.
No dia 04 de abril de 2016 a Escola de Educação Física e Desportos (EEFD/UFRJ) deu início ao semestre 2016.1 recebendo os alunos ingressantes nos cursos de Ed. Física e Dança. Sim, nosso ano letivo de 2016 começou em abril, pois passamos por uma temporada de greve que durou três meses no ano de 2015 e que exigiu a reorganização do calendário acadêmico de toda a universidade. Aliás, o segundo semestre de 2015 foi percorrido com bastante intensidade: além do período de reinvindicações e mobilizações da greve que foi – acho importante pontuar – iniciada pelo corpo discente da universidade, nós: estudantes, professores e técnicos administrativos da EEFD passamos por uma eleição para diretoria da escola que alterou significativamente o perfil da direção.
A chapa eleita foi formada por Katya Gualter e Ângela
Bretas, diretora e vice-diretora respectivamente. Ângela é
professora dos cursos de Ed. Física e Katya, professora dos cursos de
dança e, há época das eleições,
trabalhava como chefe de departamento no DAC – Departamento de Arte Corporal (núcleo
que abriga os três cursos de Dança da UFRJ – Bacharelado em Dança,
Bacharelado em Teoria da Dança e Licenciatura em Dança).
As duas professoras/candidatas construíram uma campanha que teve como principal
motivação a integração e a articulação dos agentes
universitários – discentes, docentes e técnicos
administrativos – e estiveram muito atentas a importância da criação
destes laços para o sucesso da gestão. Estiveram e, exercitam –
agora que já eleitas – estar. Daí a importância daquele 04 de abril citado lá
no início desta conversa.
Cada um dos cursos da UFRJ têm suas programações e rituais
particulares para a Semana de Integração dos Calouros, que é
o período que dá início aos semestres letivos. Eu, como
estudante do curso de Licenciatura em Dança desde o período 2011.1,
atravessei onze semanas de integração. Nos cursos de dança,
a natureza destas recepções é varíavel e depende do tipo de envolvimento
que a turma veterana (normalmente as turmas do 3º período recebem os estudantes que estão
chegando) tem com este momento; da articulação da turma que vai receber os novatos
com o CADAN (Centro Acadêmico de Dança); e do
cruzamento dos interesses de programação do CADAN e do DAC, já
que a semana de recepção também é pensada pelos professores e
coordenadores dos cursos de dança em reuniões de departamento.
Sobre a recepção dos calouros dos cursos de Ed. Física
eu não tenho absolutamente nada para falar. Na verdade os corpos
discentes dos cursos de dança e educação física parecem habitar camadas
completamente diferentes de um mesmo prédio. Construindo, inclusive, um imaginário
de rivalidade e incompatibilidade entre os cursos. De fato são
duas áreas que elaboram saberes sobre o corpo a partir de interesses
e referências que são diferentes, mas que talvez não
precisem se repelir... E isso ficou claro nesta última recepção de
calouros.
No final de semana anterior ao início da Semana
de Integração Acadêmica, recebi um e-mail de um dos
professores dos cursos de dança, copiado para alguns outros colegas
estudantes e professores, que dizia que a diretora da escola, Katya Gualter,
estava pensando junto aos outros membros da direção, atividades de recepção
que misturassem os alunos da dança aos alunos da educação
física.
A sugestão era que estudantes veteranos dos cursos de dança
conduzissem atividades para os grupos de calouros dos cursos de Ed. Física
–
que eram muitos! No turno da manhã um grupo de 12 alunos de dança
trabalhou com 100 calouros de Ed. Física! Os turnos da tarde e da noite
receberam, mais ou menos, 40 alunos cada um.
Li todo o texto da mensagem e quando acabei estava
aterrorizadamente convencida de que estaria lá, junto a uma turma cheia de alunos dos
cursos de ed. física com seus preconceitos e enrijecimentos. Mas quando
cheguei para ministrar a atividade junto aos outros colegas, simplesmente me
dei conta de que preconceituosa e enrijecida estava eu, convencida de que o
pensamento sobre corpo que me interessa é o suprasumo dos saberes e de que isto
estaria fora do alcance de percepção e interesse dos estudantes do curso
de ed. física. Me fudi gostoso. Desculpem, mas não há
expressão melhor. As atividades nos três turnos ocorreram muito bem. Não
só
no que diz respeito a aceitação dos alunos que estavam chegando, mas
também com relação ao entrosamento e fricção
destes dois campos de conhecimento (dança e educação física) ali representados nas experiências
de corpos que chegavam interessados cada qual em uma área.
Participei de três atividades que tiveram propostas e conduções
diversificadas, mas que se preocuparam em incitar a atenção para o
coletivo e para o espaço que estávamos co-habitando. Nos turnos da manhã
e da tarde, as turmas de calouros foram formadas só por alunos
dos cursos de ed. física e no turno da noite as turmas
receberam também alunos da dança (isso porque a graduação
em dança é um curso noturno). Nas salas que ocupei
destilaram-se reações de curiosidade, desconfiança, incomodações sutis,
euforia, inquietação, alegria, desconforto e persistência; percepção
que tive graças a minha participação junto às turmas nas atividades e às
breves conversas que ocorreram ao final de cada turno – entre os
propositores e os calouros.
Por enquanto este texto é um relato. Tempo queira que ele possa
ser esgarçado para que possamos ver as linhas de força
e os fluxos históricos, de poder e de revolução que enledam esta narrativa. Mas uma
poeirinha de jóia é certa: o 04 de abril de 2016
transformou a relação bilateral que é a regra da
nossa experiência na Escola de Educação Física e Desportos e contemplou, pela via
da ação, a palavra INTEGRAÇÃO.
há caminho
--
laurebruna
Comentários
Postar um comentário